segunda-feira, 30 de julho de 2012

Tipos de Discurso


Dentre os canais que constituem o ato da comunicação, figura-se o discurso. Ele é o meio pelo qual se transmite uma ideia, se expõe uma opinião, quer na fala ou na escrita.

Dessa forma, em se tratando do texto narrativo, todo o desenrolar dos fatos, em consonância com a ação dos personagens, está condicionado ao propósito do narrador em materializá-lo por meio de uma mensagem discursiva. Tal registro se dá de formas distintas, caracterizando-se de forma direta e indireta ou, em alguns casos, ocorre a fusão de ambas.

Para que possamos compreender sobre as características inerentes a cada modalidade, analisaremos minuciosamente todas elas.


Discurso direto
A produção se dá de forma integral, na qual os diálogos são retratados sem a interferência do narrador. Trata-se de uma transcrição fiel da fala dos personagens, que, para introduzi-las, o narrador utiliza-se de alguns sinais de pontuação, aliados ao emprego de alguns verbos de elocução, tais como: dizer, perguntar, responder, indagar, exclamar, ordenar, entre outros.

A título de exemplificação, apoiemo-nos no seguinte exemplo:

“Maurício saudou, com silenciosa admiração, esta minha vida avisada malícia. E imediatamente, para meu príncipe:
- Há três anos que não te vejo Jacinto... Como tem sido possível, neste Paris que é um aldeola, e que tu atravancas?” 
Queirós, Eça de. A cidade e as serras. São Paulo: Hedra, 2006



Discurso indireto
O mesmo ocorre quando o narrador, ao invés de retratar as falas de forma direta, as reproduz mediante o atributo de suas próprias palavras, colocando-se na condição de intermediário frente à ocorrência.

Observaremos a seguir um quadro em que são relatadas as mudanças ocorridas na passagem do discurso direto para o indireto, enfatizando as particularidades relacionadas a tempos verbais, advérbios e pronomes.
Discurso diretoDiscurso indireto
Uso da primeira pessoa do discursoTerceira pessoa
Verbo no presente do indicativoEmprego do pretérito imperfeito do indicativo
Verbo no pretérito perfeitoPretérito mais que perfeito
Futuro do presenteFuturo do pretérito
 Modo imperativo Pretérito imperfeito do subjuntivo
 Adjuntos adverbiais: aqui, cá, aí Adjuntos adverbiais: ali, lá
 Ontem O dia anterior
 Amanhã O dia seguinte

Discurso indireto livre
Como anteriormente mencionado, nesta modalidade, as formas direta e indireta fundem-se por meio de um processo em que o narrador insere discretamente a fala ou os pensamentos do personagem em sua fala. Embora ele não participe da história, instala-se dentro de suas personagens, confundindo sua voz com a delas.
Observemos um fragmento extraído do romance Madame Bovary, do escritor francês Gustave Flaubert, publicado em 1857:


“Olhava-a, abria-a e chegava mesmo a aspirar-lhe o perfume do forro, misto de verbena e de fumo. A quem pertenceria?... Ao Visconde. Era talvez presente da amante.”

domingo, 29 de julho de 2012

O GÊNERO CRÔNICA


Definição

Segundo alguns autores, crônica pode ser:

01 – Uma narração, segundo a ordem temporal. O termo é atribuído, por exemplo, aos noticiários dos jornais, comentários literários ou científicos, que preenchem periodicamente as páginas de um jornal.
02 – Uma narração histórica pela ordem do tempo em que os fatos ocorreram; conjunto de notícias que circulam sobre pessoas; seção de jornal onde se comentam notícias e fatos quotidianos; história da vida de um rei; biografia escandalosa.
03 – No âmbito da literatura e da história, o texto literário breve, em geral narrativo, de trama quase sempre pouco definida e motivos, na maior parte, extraídos do cotidiano imediato, constituindo-se também em uma compilação de fatos históricos apresentados segundo a ordem de sucessão no tempo.
04 – Texto que registra uma observação ou impressão sobre fatos cotidianos; pode narrar fatos reais em formato de ficção.
OBSERVAÇÃO – Originalmente a crônica limitava-se a relatos verídicos e nobres; entretanto, grandes escritores a partir do séc. XIX passam a cultivá-la, refletindo, com argúcia e oportunismo, a vida social, a política, os costumes, o cotidiano etc. do seu tempo em livros, jornais e folhetins. Na aplicação do descritor para acervo referente à literatura de cordel, use para festas e narrativa.

As  Características
  da  Crônica

As características abaixo foram citadas por vários autores que tentaram entender a crônica enquanto estilo literário:
·  Ligada à vida cotidiana;
·  Narrativa informal, familiar, intimista;
·  Uso da oralidade na escrita: linguagem coloquial;
·  Sensibilidade no contato com a realidade;
·  Síntese;
·  Uso do fato como meio ou pretexto para o artista exercer seu estilo e criatividade;
·  Dose de lirismo;
·  Natureza ensaística;
·  Leveza;
·  Diz coisas sérias por meio de uma aparente conversa fiada;
·  Uso do humor;
·  Brevidade;
·  É um fato moderno: está sujeita à rápida transformação e à fugacidade da vida moderna.


Tipos de Crônica
           
A crônica literária começou a despertar interesse no Brasil na época do Romantismo, quando se referia à vida urbana de nossos maiores centros ou tratava de matéria política. Mas a renovação de seu conceito se fez sentir mais modernamente. Além de ser artigo de jornal, registra os fatos, as novidades ou até seus comentários, pela penetração em problemas psicológicos e pelo abandono dos assuntos da vida mundana de camadas mais elevadas.

1- Crônica narrativa
Conta episódios cativantes cuja trama envolve muita ação, poucas personagens e um desfecho imprevisível. Esse tipo de crônica pode apresentar teor anedótico, crítico ou lírico.

2- Crônica lírica ou poética
Apresenta uma linguagem poética e metafórica. Nela predominam emoções, os sentimentos (paixão, nostalgia, saudades), traduzidos numa atitude poética.

3-Crônica reflexiva
O autor tece reflexões filosóficas, isto é, analisa os mais variados assuntos do cotidiano através de impressões e inferências.

4- Crônica metalinguística
É a crônica que fala do próprio ato de escrever, o fazer literário, o ato da criação.

5-Crônica humorística
São sátiras da vida em sociedade, ampliando seus problemas de forma caricatural
para reduzi-los ao humor.

6- Crônica Dissertativa
Opinião explícita, com argumentos mais "sentimentalistas" do que "racionais" (em vez de "segundo o IBGE a mortalidade infantil aumenta no Brasil", seria "vejo mais uma vez esses pequenos seres não alimentarem sequer o corpo"). Exposto tanto na 1ª pessoa do singular quanto na do plural

7- Crônica Descritiva
É o tipo de crônica que explora a caracterização de seres animados e inanimados num espaço. Preciso como uma fotografia ou dinâmico como um filme.

8- Crônica Jornalística
É a crônica que apresenta aspectos particulares de notícias ou fatos. Pode ser policial, esportiva ou política.

9- Crônica Histórica
É a crônica baseada em fatos reais ou fatos históricos.

10- Crônica narrativo-descritiva
Quando um texto alterna momentos narrativos com flagrantes descritivos, temos uma abordagem narrativo- descritiva. Dessa forma, as ações detêm-se para que o leitor visualize, mentalmente, as imagens que a sensibilidade do autor registra com palavras. O que se observa no texto assim qualificado é a predominância da sucessão de ações sobre as inserções descritivas.

11- Crônica-comentário
Cercando-se de impressões críticas, com ironia, sarcasmo ou humor, a crônica-comentário resulta num texto cujo ponto forte são as interpretações do autor sobre um determinado assunto, numa visão quase jornalística.

12- Crônica-ensaio
Apesar de ser escrita em linguagem literária, ter uma veia humorística e valer-se inclusive da ficção, este tipo de crônica apresenta uma visão abertamente crítica da realidade cultural e ideológica de sua época, servindo para mostrar o que autor quer ou não quer de seu país. Aproxima-se do ensaio, do qual guarda o aspecto argumentativo.


Construção de Crônicas:

Os Elementos

A estrutura básica de uma crônica é muito simples, os elementos básicos da crônica são: TemaClimaAmbienteConflitoTrama.
Tema define o tipo de crônica que você vai montar, o Clima determina o tom desse tema, o Ambiente é o cenário onde ela se desenrola, o Conflito é o problema apresentado aos jogadores, a Trama é o desenvolvimento da crônica.
O Tema não precisa ser conhecido dos jogadores, geralmente em crônicas de Vampire o tema é o horror pessoal, uma exploração dos medos do personagem materializados em sua forma de Vampiro.
Clima é um dos elementos mais importantes da Crônica, devendo ser bem trabalhado, e cuidadosamente variado. A introdução é muito importante para apresentar o clima aos jogadores.
Ambiente é o cenário onde os jogadores vão interagir. Tem de ser complexo o suficiente para ser visualizado, porém simples o suficiente para ser compreendido. É importante não sobrecarregar o Ambiente, e é muito importante ao StoryTeller (ST) o conhecimento do Ambiente.
Conflito é o motor por trás do jogo. Conflito não significa somente oposição, e sim um problema a ser solucionado. O Conflito pode ser baseado em: PersonagemEvento, ou Atmosfera. O conflito baseado em personagem é contra um Antagonista (geralmente), o famoso vilão, que tem de ser tão ou mais desenvolvido pelo ST do que os próprios players, ele precisa ter um comportamento coerente, uma motivação convincente, fraquezas, pontos fortes, quanto mais completo for, mais real parecerá para seus players. O conflito baseado em Eventos é determinado por acontecimentos que tecem o rumo da história, eles não precisam necessariamente serem ligados uns aos outros à primeira vista, mas tem de ser "costurados" para formar uma teia que envolva os jogadores e de a eles uma linha a ser seguida. E o conflito baseado ematmosfera, usa a própria atmosfera como motivação para a história, você quer uma história agitada? Invoque uma atmosfera de guerra civil, quer uma história densa? Invoque uma atmosfera "down" para envolver seus personagens. Você deve tratar a atmosfera como membro do jogo, e trabalha-lá, para conseguir os resultados que pretende.
Mas o mais importante disso tudo, a despeito de a crônica ser ou não baseada em algum dos tópicos anteriores, é a existência de algo com o qual os jogadores devam se deparar e enfrentar, seja um inimigo, a cidade, ou eles mesmos...
Trama define a profundidade de uma crônica, uma trama fraca não sustenta uma história por muito tempo, e uma trama complexa demais pode ser confusa. O melhor ingrediente é o equilíbrio , a trama tem de ter o suficiente para os jogadores a reconhecerem por eles mesmos, tirarem conclusões e decidirem o que farão. Se ela for muito complexa, deve ser muito bem introduzida aos jogadores, gradualmente e com os recursos necessários para eles a compreenderem. Uma falha comum aos ST em geral é a criação da trama perfeita, porém esquecendo de fornecer elementos suficientes ao jogador para percebê-la.
Em geral, a trama é tudo aquilo por trás (sem empulhação, ok?) do conflito, é aquilo que os jogadores não vêem, que acontece em volta deles e eles precisam desvendar, é imprescíndivel se trabalhar bem a trama de uma história, mas não deve-se tê-la completamente pronta, precisa-se deixar algum espaço para ser preenchido durante o jogo.
Depois disso ainda, para a crônica funcionar perfeitamente, ela precisa de um elemento, a Motivação dos personagens. Por que eles estão ali? O que os guia, e para que? Qual a relação dos personagens com o meio em que vivem? Qual a relação dos personagens com o Antagonista? Enfim, a motivação será a base de toda a relação dos Jogadores com a crônica, e com o conflito. Personagens sem motivações reais e convincentes são personagens bidimensionais, como os aventureiros-que-entram-em-dungeons-para-enriquecer-e-destruir-monstros, exija do seu jogador uma explicação convincente para cada um daqueles pontos que ele tem, faça-o pensar sobre o personagem, e principalmente, faça-o conhecer MUITO bem o personagem antes que comece a história, pois assim você possui mais uma carta na manga para acrescentar à sua trama.

Roteiro de Leitura

Ao ler, fichar ou produzir uma crônica, ela deve conter:
·       Título sugestivo;
·         Espaço ou cenário;
·         Foco narrativo;
·         Personagem ou personagens;
·         Enredo;
·         Tempo - cronológico ou psicológico;
·         Tom ou estilo da narrativa - humorístico, lírico, irônico, crítico, poético ou reflexivo;
·         Linguagem coloquial - uma "conversa" com o leitor; 
·         Elemento surpreso - pode ou não existir;
·         Desfecho - pode ser aberto, conclusivo, surpreendente.

Os Recursos do Cronista
(Figuras de Linguagem)

As figuras de linguagem são recursos utilizados pelos autores para realçar uma ideia. Um bom cronista tem dois instrumentos básicos: o olhar e a linguagem. Com o olhar ele reconhece o acontecimento, o momento que merece ser preservado, o qual outros nem notam; com a linguagem, retrata a situação, e as figuras de linguagem, o ajudam a fazer isso com sucesso.

Segundo Mauro Ferreira, a importância em reconhecer figuras de linguagem está no fato de que tal conhecimento, além de auxiliar a compreender melhor os textos literários, deixa-nos mais sensíveis à beleza da linguagem e ao significado simbólico das palavras e dos textos.

Definição: Figuras de linguagem são certos recursos não-convencionais que o falante ou escritor cria para dar maior expressividade à sua mensagem.


1) Antítese: consiste na aproximação de termos contrários, de palavras que se opõem  pelo sentido.

“Os jardins têm vida e morte.”


2) Ironia: é a figura que apresenta um termo em sentido oposto ao usual, obtendo-se, com isso, efeito crítico ou humorístico.
“A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças.”

3) Eufemismo: consiste em substituir uma expressão por outra menos brusca; em síntese, procura-se suavizar alguma afirmação desagradável.
Ele enriqueceu por meios ilícitos. (em vez de ele roubou)

4) Hipérbole: trata-se de exagerar uma ideia com finalidade enfática.
Estou morrendo de sede. (em vez de estou com muita sede)

5) Prosopopeia ou personificação: consiste em atribuir a seres inanimados predicativos que são próprios de seres animados.
O jardim olhava as crianças sem dizer nada.


6) Metáfora: consiste em empregar um termo com significado diferente do habitual, com base numa relação de similaridade entre o sentido próprio e o sentido figurado. A metáfora implica, pois, uma comparação em que o conectivo comparativo fica subentendido.

“Meu pensamento é um rio subterrâneo.”


7) Metonímia: como a metáfora, consiste numa transposição de significado, ou seja, uma palavra que usualmente significa uma coisa passa a ser usada com outro significado. Todavia, a transposição de significados não é mais feita com base em traços de semelhança, como na metáfora. A metonímia explora sempre alguma relação lógica entre os termos. Observe:
Não tinha teto em que se abrigasse. (teto em lugar de casa)

8) Catacrese: ocorre quando, por falta de um termo específico para designar um conceito, torna-se outro por empréstimo. Entretanto, devido ao uso contínuo, não mais se percebe que ele está sendo empregado em sentido figurado.
O pé da mesa estava quebrado.

9) Sinestesia: trata-se de mesclar, numa expressão, sensações percebidas por diferentes órgãos do sentido.
A luz crua da madrugada invadia meu quarto.

10) Comparação: Consiste em atribuir características de um ser a outro, em virtude de uma determinada semelhança.
Exemplo: O meu coração está igual a um céu cinzento. O carro dele é rápido como um avião. 

Crônicas Sugeridas Pela Olimpíada de Língua Portuguesa

A Última Crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer um flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e Estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acentuar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno da mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho — um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de coca-cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno da mesa um pequeno ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a coca-cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “parabéns pra você, parabéns pra você…” Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha
no cabelo, limpa o farelo de bolo que lhe cai no colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. De súbito, dá comigo a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria a minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
(Fernando Sabino. In: Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1979-1980.)

Biografia de Fernando Tavares Sabino


Fernando Tavares Sabino (Belo Horizonte, 12 de outubro de 1923 — Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2004) foi um escritor e jornalista brasileiro.



Durante a adolescência, foi locutor de programa de rádio Pila No Ar e começou a colaborar regularmente com artigos, crônicas e contos em revistas da cidade, conquistando prêmios em concursos.

No início da década de 1940, começou a cursar a Faculdade de Direito e ingressou no jornalismo como redator da Folha de Minas. O primeiro livro de contos, Os grilos não cantam mais, foi publicado em 1941, no Rio de Janeiro quando o autor tinha apenas dezoito anos, e sendo que alguns contos do livro foram escritor quando Fernando Sabino contava apenas quatorze anos.

Tornou-se colaborador regular do jornal Correio da Manhã, onde conheceu Vinicius de Moraes, de quem se tornou amigo.

Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1944. Depois de se formar em Direito na Faculdade Federal do Rio de Janeiro em 1946, viajou com Vinicius de Moraes aos Estados Unidos da América, onde morou por dois anos em Nova Iorque com sua primeira esposa Helena Sabino e a primogenita Eliana Sabino.

O encontro marcado, uma de suas obras mais conhecidas, foi lançada em 1956, ganhando edições até no exterior, além de ser adaptada para o teatro. Sabino decidiu, então (1957), viver exclusivamente como escritor e jornalista. Iniciou uma produção diária de crônicas para o Jornal do Brasil, escrevendo mensalmente também para a revista Senhor.

Em 1960, Fernando Sabino publicou o livro O homem nu, pela Editora do Autor, fundada por ele, Rubem Braga e Walter Acosta. Publicou, em 1962, A mulher do vizinho, que recebeu o Prêmio Fernando Chinaglia, do Pen Club do Brasil.

Em 1966, fez a cobertura da Copa do Mundo de Futebol para o Jornal do Brasil. Fundou, em 1967, em conjunto com Rubem Braga, a Editora Sabiá, onde publicou livros de Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Clarice Lispector, entre outros.

Publicou o em 1979, iniciado mais de trinta anos antes. A obra, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti, e acabaria sendo adaptada para o cinema, com direção de Oswaldo Caldeira, em 1989, e também para o teatro. Em julho de 1999, recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra.

Faleceu em sua casa em Ipanema (zona sul no Rio de Janeiro), vítima de T.A.F no fígado, às vésperas do 81º aniversário. A pedido, o epitáfio é o seguinte: "Aqui jazz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino!"
Fonte(s):

Falemos das flores.
O que é uma flor?

Será esta criação vegetal que na primavera se abre do botão de uma planta?

Não: a flor é o tipo da perfeição, é a mais sublime expressão da beleza, é um sorriso cristalizado, é um raio de luz perfumado.
Por isso há muitas espécies de flor.
Há as flores do vale - mimosas criaturas que vivem o espaço de um dia, que se alimentam de orvalho, de luz e de sombras.
Há as flores do céu - as estrelas, - que brilham à noite no seu manto azul, como os olhos de uma linda pensativa.
Há as flores do ar - as borboletas, - que têm nas suas asas ligeiras as mais belas cores do prisma.
Há as flores da terra - as mulheres, - rosas perfumadas que ocultam entre as folhas os seus espinhos.
Há as flores dos lábios - os sorrisos, lindas boninas que o menor sopro desfolha.
Há as flores do mar - as pérolas, - filhas do oceano que saem do seio das ondas para se aninharem no seio de uma mulher morena.
Há as flores da poesia - os versos, - às vezes tão cheios de perfumes e de sentimentos como a mais bela flor da primavera.
Há as flores d'alma - os sentimentos, - flores a que o coração serve de vaso, e as lágrimas de orvalho.
Há as flores da religião - as preces, - modestas violetas que perfumam a sombra e o retiro.
Há as flores da harmonia - os gorjeios - que brincam nos lábios mimosos de uma boquinha sedutora.
Há as flores do espírito - os ziguezagues, - que nascem sobre o papel como rosas silvestres e sem cultura.
(Não falo dos nossos ziguezagues, que, quando muito, são flores murchas).
Há enfim uma espécie de flor que é tão rara como a tulipa negra de Alexandre Dumas, como o cravo azul de Jean-Jacques, como o crisântemo azul de George Sand.
É a flor da vida, este sonho dourado, este puro ideal a que todos aspiram e de que tão poucos gozam.
Porque a flor da vida apenas vive um dia, como as rosas da manhã que a brisa da tarde desfolha.
E quando murcha, deixa dentro d'alma os seus perfumes, que são essas recordações queridas que nos sorriem ainda nos últimos tempos da existência.
Para uns a flor da vida nasce nos lábios de uma mulher; para outros no seio de um amigo.
Feliz do caminhante que à beira do bosque por onde passa colhe esta florzinha azul, espécie de urze cingida de uma coroa de espinhos.
Muitas vezes, depois de muitas fadigas, quando já tem as mãos feridas dos espinhos, e que vai colher a flor, ela se desfolha.
O vento soprou sobre ela, ou um verme roeu-lhe os estames.
Até aqui os meus leitores têm visto o mundo pelo prisma de uma flor; mas não se devem iludir com isso.
Algum velho político de cabelos brancos lhes dirá que isto são simples devaneios de uma imaginação exaltada.
A flor é a poesia, mas o fruto é a realidade, é a única verdade da vida.
Enquanto pois os poetas vivem à busca de flores, os homens sérios e graves, os homens práticos só tratam de colher os frutos.
Eles veem desabrochar as flores, exalar os seus perfumes, e esperam como o hortelão que chegue o outono e com ele o tempo da colheita.
E na verdade, a flor encerra sempre o germe de um fruto, de um pomo dourado, que outrora perdeu o homem, mas que é hoje a sua salvação.
A explicação disto me levaria muito longe, se eu não me lembrasse que até agora ainda não escrevi uma linha de revista, e ainda não dei aos meus leitores uma notícia curiosa.
Mas, a falar a verdade, não me agrada este papel de noticiador de coisas velhas, que o meu leitor todos os dias vê reproduzidas nos quatro jornais da corte, em primeira, segunda, e terceira edição.
Poderia dizer-lhe que depois da epidemia vai-se revelando uma outra epidemia de divertimentos, realmente assustadora.
Fala-se em clube artístico, em baile mascarado no teatro lírico, em passeios de máscaras pelas ruas, numa companhia francesa de vaudevilles, e em mil outras coisas que tornarão esta bela cidade do Rio de Janeiro um verdadeiro paraíso.
Neste tempo é que os folhetinistas baterão as asas de contentes, e não terão trabalho de escrever tiras de papel; preferirão ir ao baile, ao passeio, ao teatro, colher as flores de que hão de formar o seu bouquet de domingo.
Enquanto porém não chega esta bela quadra, essa primavera dos nossos salões, esse abril florido da nossa sociedade, não há remédio senão contentarmo-nos com o que temos, e em vez de rosas, apresentar ao leitor as folhas secas do ano.

A respeito de teatro, não falemos; é uma casa em cujo pórtico (digo pórtico figuradamente) a prudência parece ter gravado a inscrição de Dante: — Guarda e passa.
Se desprezais o aviso e entrais, daí a pouco tereis razão de arrepender-vos.
Sentai-vos em uma cadeira qualquer: a vossa direita está um gruísta; a vossa esquerda um chartonista.
Levanta-se o pano: representa-se a Norma ou a Fidanzata Corsa; canta uma das duas prima-donas, uma das duas prediletas do público.
— Bravo! grita o gruísta entusiasmado.
— Que exageração! diz o chartonista estirando o beiço.
— Divino!
— Oh! é demais!
— Sublime!
— Insuportável!
E assim neste crescendo continuam os dois dilettanti, de maneira que o vosso ouvido direito está sempre em completa oposição com o vosso ouvido esquerdo.
Cai o pano.
No intervalo conversai um pouco com os vossos vizinhos.
— É preciso ser completamente ignorante, diz o gruísta com o aplomb de um maestro, para não se apreciar a sublimidade do talento desta mulher!
Vós, meu leitor, que não quereis assinar um termo de ignorante, não tendes remédio senão confessar-vos gruísta, e em lugar de dois pontos de admiração dais três.
— Com efeito, é uma artista exímia!!!
Apenas acabais a palavra, quando o chartonista vos interroga do outro lado.
— É possível que um homem de gosto e de sentimento admita semelhantes exagerações?
Ficais embatucado; mas, se não quereis passar por homem de mau gosto, deveis imediatamente responder:
— Com efeito, não é natural.
Daí a um momento o vosso vizinho da direita retruca:
— Veja, todos os camarotes da 4a ordem estão vazios.
— É verdade!
Torna o vizinho esquerdo:
— Com esta chuva, que casa, hem!
— Boa!
Agora acrescentai a isto as desafinações do Dufrene, a rouquidão do Gentile, os cochilos do contra-regra, e fazei ideia do divertimento de uma noite de teatro.
Ao correr da pena. 2ª ed. São Paulo: Melhoramentos, s/d.

Biografia de José de Alencar

José Martiniano de Alencar (1829-1877), político, jornalista, advogado e escritor brasileiro. Foi o maior representante da corrente literária indianista. Cearense, com parte da adolescência vivida na Bahia, José de Alencar formou-se em Direito e foi jornalista no Rio de Janeiro. Vaidoso e sentimental, iniciou sua carreira literária em 1857, com a publicação de O guarani, lançado como folhetim e que alcançou enorme sucesso, o que lhe rendeu fama súbita. Sua obra costuma ser dividida em três etapas: 1) Romances urbanos: Cinco minutos (1860), A viuvinha (1860), Lucíola (1862), Diva (1864), A pata da gazela (1870), Sonhos d’ouro (172, Senhora (1875) e Encarnação (1877). 2) Romances históricos: O Guarani (1870), Iracema (1875), As Minas de prata (1865), Alfarrábios (1873), A guerra dos mascates (1873) e Ubirajara (1874). 3) Romances regionalistas: O gaúcho (1870), O tronco do Ipê (1871), Til (1872), O sertanejo (1876). José de Alencar criou uma literatura nacionalista onde se evidencia uma maneira de sentir e pensar tipicamente brasileiras. Suas obras são especialmente bem sucedidas quando o autor transporta a tradição indígena para a ficção. Tão grande foi a preocupação de José de Alencar em retratar sua terra e seu povo que muitas das páginas de seus romances relatam mitos, lendas, tradições, festas religiosas, usos e costumes observados pessoalmente por ele, com o intuito de, cada vez mais, “abrasileirar” seus textos. Ao lado da literatura, José de Alencar foi um político atuante — chegou a ocupar o cargo de ministro da Justiça do gabinete do visconde de Itaboraí — e foi um prestigiado deputado do Partido Conservador por quatro legislaturas. Todas as reformas pelas quais lutou propunham a manutenção do regime monárquico (ver Monarquia) e da escravatura (ver Escravidão). Famoso a ponto de ser aclamado por Machado de Assis como “o chefe da literatura nacional”, José de Alencar morreu aos 48 anos, no Rio de Janeiro, deixando seis filhos, inclusive Mário de Alencar, que seguiria a carreira de letras do pai.

A Rua do Ouvidor
Joaquim Manuel de Macedo 


A Rua do Ouvidor contou diversas lojas de perfumarias, e, por consequência, devia ser a rua mais cheirosa, mais perfumada entre todas as da cidade do Rio de Janeiro.

E todavia não o era!...
Com efeito não havia nem há rua mais opulenta de aromas, de perfumes, de pastilhas odoríferas, de banhas e de pomadas de ótimo cheiro; mas tudo isso encerrado em vidrinhos, em frascos e em pequenas caixas bonitas que mantinham e mantêm a Rua do Ouvidor tão inodora como as outras de dia.
Atualmente de noite observa-se o mesmo fato.
Naquele tempo, porém, isto é, nos tempos do Demarais, e ainda depois, a Rua do Ouvidor, de fácil e reta comunicação com a praia, era uma das mais frequentadas pelos condutores dos repugnantes barris, das oito horas da noite até às dez.
A esses barris asquerosos o povo deu a denominação geralmente adotada de - tigres - pelo medo explicável que todos fugiam deles.
Esse ruim costume do passado me traz à memória informação falsa e ridícula que li, e caso infeliz e igualmente ridículo, de que fui testemunha ocular e nasal em 1839, no meu saudoso tempo de estudante.
A informação é a seguinte:
Um francês (viajante charlatão) passou pela cidade do Rio de Janeiro, e demorando-se nela alguns dias, ouviu dos patrícios da Rua do Ouvidor queixas dos incômodos tigres que frequentes passavam ali de noite. Sábio e consciencioso observador que era, o viajante tomou nota do ato, e poucos anos depois publicou, no seu livro de viagens, esta famosa notícia:
“Na cidade do Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, feras terríveis, os trigraves, vagam, durante a noite, pelas ruas, etc., etc.!!!”
E é assim que escreve a história!
O caso que observei foi desastroso, mas de natureza que fez rir a todos.
Pouco depois das oito horas da noite, um inglês, trajando casaca preta e gravata branca...
Entre parêntese.
Em 1839 ainda era de uso ordinário e comum a casaca; o reinado de paletó começou depois; muitos estudantes iam às aulas de casacas, e não havia senador nem deputado que se apresentasse desacasacado nas respectivas Câmaras: o paletó tornou-se eminentemente parlamentar de 1845 em diante.
Fechou-se o parênteses.
O inglês de chapéu de patente, casaca preta e gravata branca subia pela Rua do Ouvidor, quando encontrou um negro que descia, levando à cabeça um tigre para despejá-lo no mar.
O pobre africano ainda a tempo recuou um passo, mas o inglês que não sabia recuar avançou outro; o condutor do tigre encostou-se à parede que lhe ficava à mão direita, e o inglês supondo-se desconsiderado por um negro que lhe dava passo à esquerda pronunciou a ameaçadora palavra goodemi, e sem mais tir-te nem guar-te honrou com um soco britânico a face do africano, que perdendo o equilíbrio pelo ataque e pela dor, deixou cair o tigre para diante e naturalmente de boca para baixo.
Ah! Que não sei de nojo como o conte!
O Tigre ou o barril abismou em seu bojo o chapéu e a cabeça e inundou com o seu conteúdo a casaca preta, o colete e as calças do inglês.
O negro fugiu acelerado, e a vítima de sua própria imprudência, conseguindo livrar-se do barril, que o encapelara, lançou-se a correr atrás do africano, sacudindo o chapéu em estado indizível, e bradando furioso:
— Pegue ladron! Pegue ladron!...
Mas qual - pega ladron! -: todos se arredavam de inocente e malcheiroso negro que fugia, e ainda mais o inglês, tornado tigre pela inundação que recebera.
Era geral o coro de risadas na Rua do Ouvidor.
O inglês, perdendo enfim de vista o africano, completou o caso com um remate pelo menos tão ridículo como o seu desastre. Voltando rua acima, parou em frente de numeroso grupo de gente que testemunhara a cena, e ria-se dela.
Ainda hoje o estou vendo; o inglês parou, e sempre a sacudir o chapéu olhou iroso para o grupo e disse mas disse com orgulhosa gravidade britânica:
— Amanhã faz queixa a ministro da Inglaterra, e há de ter indenização de chapéu e de casaca perdidas.
Ah! Eu creio que então a melhor das risadas que romperam foi a minha gostosa, longa e repetida risada de estudante feliz e alegrão.
É inútil dizer que não houve questão diplomática. A Inglaterra ainda não se tinha feito representar no Brasil por Mr. Christie, o único capaz (depois do jantar) de exigir indenização do chapéu e da casaca que o patrício perdera.
Não foi este único desastre que os tigres ocasionaram, foram muitos e todos mais ou menos grotescos, e sei de um outro (além da encapelação do inglês) ocorrido na Rua do Carmo hoje Sete de Setembro, que de súbito desfez as mais doces esperanças do casamento inspirado e desejado por mútuo amor.
O namorado era estudante, meu colega e amigo; estava perdidamente apaixonado por uma viúva, viuvinha de dezoito anos, e linda como os amores.
Uma noite, a bela senhora estava à janela, e à luz de fronteiro lampião viu o namorado que, aproveitando o ponto do mais vivo clarão iluminador, lhe mostrava, levando-o ao nariz, um raminho de lindas flores, que ia enviar-lhe, quando nesse momento o cego apaixonado esbarrou com um condutor de tigre, e, embora não encapelado, foi quase tão infeliz como o inglês.
O pior do caso foi que a jovem adorada incorreu no erro quase inevitável de desatar a rir, e logo depois de fugir da janela por causa do mau cheiro de que se encheu a rua.
O namorado ressentiu-se do rir impiedoso da sua esperançosa e querida noiva; amoroso, porém, como estava, dois dias depois tornou a passar diante das queridas janelas.
No erro; a formosa viúva, ao ver o estudante, saudou-o doce, ternamente, mas levou o lenço a boca para dissimular o riso lembrador de ridículo infortúnio.
O estudante deu então solene cavaco, e não apareceu mais à bela viuvinha.
Um tigre matou aquele amor.
Memórias da Rua do Ouvidor. Rio de Janeiro: Perseverança, 1878.

Biografia de Joaquim Manuel de Macedo


Nasceu em 24 de junho de 1820 e faleceu em 11 de abril de 1882, no Rio de Janeiro, quase esquecido e na maior pobreza. Formou-se em Medicina em 1844, ano em que estreou na literatura com o famoso romance "A Moreninha" até hoje sucessivamente reeditado. Casou-se com a prima-irmã do poeta Alvares de Azevedo.



Joaquim Manuel Macedo foi jornalista, político militante e professor de História e Coreografia do Brasil no Colégio Pedro, II. Sócio fundador, secretário e orador do Instituto Histórico e Geográfico. Brasileiro, desde 1845. Deputado à Assembléia Provincial do Rio de Janeiro e deputado geral (legislatura 1864-68 e 1878-81) como representante do partido liberal. Ligou-se por laços de amizade à Família Imperial, tanto que foi professor dos filhos da Princesa Isabel.

Romancista, poeta, autor dramático, é fecunda a sua obra. Abusou do derramamento sentimental do gosto popular, daí seu enorme sucesso. É reputado bom cronista do Rio antigo, sendo um dos patronos da Academia Brasileira de Letras.

Romances:

"A Moreninha" (1844); "0 Moço Loiro" (1845); "Rosa" (1849); "0 Forasteiro" (1855) "Rio do Quarto" (1869); "A Luneta Mágica" (1869); "As mulheres de Mantilha" (1870-71).

Teatro:

Dramas: "0 Cego" (1845); "Cobé" (1849); "Lusbela" (1863).

Comédias: "0 Fantasma Branco" (1856); "0 Primo da Califórnia" (1858); "Luxo e Vaidade" (1860); "A Torre em Concurso" (1863); "Cincinato Quebra-Louças" (1873) Poesias: "A Nebulosa" (poema - 1857).

Joaquim Manuel Macedo é um dos fundadores do romance no Brasil e um dos criadores do teatro brasileiro. Descreveu com senso de - observação a vida familiar e os usos e costumes da sociedade carioca de seu tempo: as cenas triviais da rua os preconceitos da sociedade, as festas, - os saraus familiares, as conversas de comadre, as pequenas Intrigas, os ingênuos ciúmes, os namoros piegas de estudantes os quais sempre acabavam em feliz casamento.

Preocupou-se antes com a pintura realista do ambiente social que com o mundo íntimo das personagens. Seus dramas, todos escritos em verso, são artificiais e enfáticos, suas comédias são mais importantes como documentos da sociedade da época. Estilo leve, atraente e vivo, e a linguagem é corrente, simples, clara, mas nem sempre correta.

0 romance "A Moreninha" apreciadíssimo na época, ainda hoje é lido com prazer, pelas qualidades Indiscutíveis que encerra: graça, simplicidade, Ingenuidade e saborosa cor local. Não se esmerava o escritor em arabescos de linguagem à moda de Coelho Neto; a sua é simples e corrente.

Seus livros têm sobretudo o sabor da juventude estudantil, diz tudo de maneira deliciosa, buscando através da sua prosa levar o leitor para - o paraíso de sua imaginação. Seus livros podem ser lidos sem censura. Durante mais de trinta anos atraiu a atenção da cidade do Rio de Janeiro. Na opinião de José Cretella Júnior é o fundador do romance brasileiro.

Publicado em 1844, A Moreninha tornou-se o introdutor da ficção romântica em nossa literatura, e deu margem a uma série de obras congêneres que acabaram sugerindo a outros ficcionistas (como Alencar e Machado de Assis) um processo romanesco apenas superado pelo Realismo.

A LUNETA MÁGICA

Segundo a estudiosa Marisa Philbert Lajolo, A LUNETA MÁGICA, é uma obra que se afasta do romance ligeiro de complicações amorosas e desenlaces piegas, não se aproxima de nada. Paira indecisa entre a fábula, o conto de fadas, e a historieta, tudo entremeado de digressões pseudofilosóficas.

As frequentes e nem sempre oportunas especulações sobre o Bem e o Mal se conduzem através de um discurso em que predomina o lugar-comum romântico, enunciado por um narrador que proclama sua miopia física e moral desde a primeira página. Em primeira pessoa, Simplício, o narrador, conta-nos suas desventuras de míope que a duas polegadas dos olhos não distingue um girassol de uma violeta.

Ser brotinho

Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.
Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.
É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescindível e tão inteligente e superior. É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.
Ser brotinho é poder usar óculos enormes como se fosse uma decoração, um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que os coroas levam a sério, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. Aguardar na paciente geladeira o momento exato de ir à forra da falsa amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.
É telefonar muito, demais, revirando-se no chão como dançarina no deserto estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.
Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.
É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema, mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.
Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada fala.
Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.
(Ser brotinho – Paulo Mendes Campos - O cego de Ipanema. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960).
Biografia de Paulo Mendes Campos

Cronista e poeta brasileiro nascido em Belo Horizonte, MG, em cuja obra destacou-se pela simplicidade com tratou temas como o mar, a vida carioca, conversas de bar e futebol etc. Seu interesse pela literatura se manifestou muito cedo e, ainda em Minas Gerais, estudou direito, veterinária e odontologia, e chegou a cursar, em Porto Alegre, RS, a Escola Preparatória de Cadetes. De volta a Belo Horizonte (1939), iniciou-se no jornalismo, no Diário de Minas. Depois da guerra (1945) mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou no Instituto Nacional do Livro e foi diretor da seção de obras raras da Biblioteca Nacional. Escreveu suas primeiras crônicas no Diário Carioca e manteve por muitos anos, na revista Manchete, uma coluna semanal. Seu primeiro livro de poemas foi A palavra escrita (1951), mas o sucesso na poesia só veio com O domingo azul do mar (1958). Seu primeiro livro de crônicas foi O cego de Ipanema (1960). Em sua obra destacam-se ainda Homenzinho na ventania (1962), Os bares morrem numa quarta-feira (1981) e Diário da tarde (1986). Também trabalhou como tradutor de poemas como The Waste Land, de T. S. Eliot, com o título de A terra inútil, e morreu na cidade do Rio de Janeiro.

Quem tem medo de mortadela?
Mário Prata 


Modismo é conosco mesmo. O brasileiro adora inventar moda. E todo mundo vai atrás dela. A última do brasileiro é “primeiro mundo”. Os publicitários nativos inventaram a expressão e agora tudo que nós queremos tem que ser coisa do “primeiro mundo”.

O carro é do primeiro mundo, a bebida é do primeiro mundo, a mulher é do primeiro mundo. Cineastas querem fazer filme de primeiro mundo, diretores de teatro trazem a moda lá da Europa. E os preços, evidentemente, também são de primeiro mundo.
Será que não nos bastam os exemplos de Portugal, Espanha, Irlanda e Grécia, que se debruçaram na mamata da CEE e agora enfrentam uma séria recessão e desemprego?
Por que essa mania, de repente, de querer virar primeiro mundo? De terceiro para primeiro? Não seria o caso de fazer um estágio, antes, no segundo mundo?
Os do primeiro mundo adoram as coisas aqui do terceiro. Por exemplo, a caipirinha. Alemães, ingleses, americanos, suecos caem trôpegos pelas calçadas de Copacabana. Quer coisa rnais brasileira, mais terceiromundista, mais caipira e mais barata? Mas já estão avacalhando com ela. Agora já tem caipirinha de vodca e, pasmem, de rum. Caipirinha sempre foi e sempre será de cachaça. Coisa de caipira mesmo. E é esta bebida que os europeus vêm procurar aqui. Mas já meteram a vodca e o rum nela para ficar com cara de primeiro mundo. Vamos deixar a caipirinha caipira, brasileiros!
Toda essa introdução para chegar à mortadela. Ou mortandela, como preferem garçons e padeiros. Quer coisa mais brasileira que a mortadela? Claro que ela veio lá da Itália. Mas tornou-se, talvez pelo baixo preço, o petisco do brasileiro. O nome vem de murta, uma plantinha italiana que lhe valeu o nome. Infelizmente o brasileiro acha que mortadela é coisa de pobre, de faminto. E o que somos nós, cara-pálidas?
A cachaça e a mortadela são produtos do Brasil, do nosso querido terceiro mundo. Mas acontece que há um preconceito dos patrícios contra a cachaça e a mortadela. Contra a mortadela o caso é mais grave. Se você oferecer mortadela numa festa, vão te olhar feio. Você deve estar perto da falência.
Neste Natal e no Reveillon frequentei várias mesas, e em nenhuma havia mortadela. Queijos de primeiro mundo, vinho de primeiro mundo, perfumes de primeiro mundo, até um peru argentino eu comi. Mas mortadela que é bom, nada. Nem uma fatiazinha.
Quando o brasileiro irá assumir que a mortadela é a melhor entrada do mundo? Quando você for para a Europa, não adianta pedir dead her que não vai encontrar. Nem muerta dela.
Mas nem tudo está perdido. No dia 1° do ano almocei com o casal Annette e Tenório de Oliveira Lima, e lá estava a mortadela, fresquinha no prato rósea. Um limãozinho em cima, um pedacinho de pão e viva o terceiro mundo, visto lá de cima do apartamento do Morumbi.
No mesmo dia, de noite, fui ao peemedebista Bar Nabuco, debaixo de frondosas sibipirunas da Praça Vilaboim e estava lá, no cardápio, toda sem-vergonha, a mortadela brasileira. Achei que estava começando bem o ano. Vai ser um Ano Bom, como se dizia antigamente. Se os novos-ricos do PMDB estão comendo mortadela, nem tudo está perdido. No Gargalhada Bar mais para PT, há um excelente sanduíche de mortadela.
E, nas boas padarias do ramo você ainda encontra a verdadeira mortadela, aquela que chega no balcão, feita na chapa, sem queimar muito, servida em pãezinhos saídos do forno.
Vamos deixar o primeiro mundo para lá. Vamos, este ano, tomar cachaça e comer mortadela. É muito mais barato ser pobre. Deixemos que o primeiro mundo exploda entre eles, mesmo tomando uísque escocês e comendo queijo fedido.
Por favor senhores brasileiros primeiro-mundistas, vamos deixar de frescura. Mortadela é o que há. É um barato.
Feliz 94 para todos vocês. Muita cachaça e muita mortadela. Apesar de tudo, o primeiro mundo é triste e melancólico. Continuemos felizes e alegres com a nossa cachaça e a nossa gostosa mortadela.
E que os candidatos à presidência deste nosso país do terceiro mundo não se esqueçam que o Jânio sempre se elegeu comendo “mortandela” e não caviar do primeiro mundo.
Publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 5/1/1994.

Biografia de Mário Prata

Mario Alberto Campos de Morais Prata é natural de Uberaba (MG), onde nasceu no dia 11 de fevereiro de 1946. Foi criado em Lins, interior de São Paulo. Com 10 anos de idade já escrevia "numa velha Remington no laboratório de meu pai (...) crônicas horríveis, geralmente pregando a liberdade e duvidando da existência de Deus". Nesse período de sua vida era o redator do jornalzinho de sua classe na escola. Sendo vizinho de frente do jornal A Gazeta de Lins, com 14 anos começou a escrever a coluna social com o pseudônimo de Franco Abbiazzi. Passou, com o tempo, a fazer de tudo no jornal, desde editoriais a reportagens esportivas e artigos de peso. O escritor Sérgio Antunes, seu amigo nessa época, disse que Mário era um molecote de "voz de taquara rachada e aparelho nos dentes ". Além de escrever Mário se dedicava ao tênis e, defendendo o Clube Atlético Linense, acabou sendo o campeão noroestino infantil na década de 60. Lia tudo o que lhe caia nas mãos, em especial as famosas revistas da época "O Cruzeiro" e "Manchete", que traziam em suas páginas os melhores cronistas da época como Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Henrique Pongetti, Rubem Braga, Millôr Fernandes e Stanislaw Ponte Preta, uma vez que em Lins, naquela época, "não chegavam os grandes clássicos", como disse o autor. Daí a forte influência que os citados cronistas tiveram em seu estilo.



Aos 16 anos recebe um convite de Roberto Filipelli, que foi depois diretor da Globo em Londres, para fazer com ele o "Jornal do Lar ". Samuel Wainer, vislumbrando seu grande talento, levou-o, nessa época, para escrever no jornal "Última Hora". Mário comenta: "Meus pais chamavam aquilo que eu escrevia de bobageiras e me previam um péssimo futuro. Medicina, Engenharia, Direito ou Banco do Brasil (eles queriam). E nada de estudar filosofia ou letras: coisa de veado". O autor acabou trabalhando 8 anos no Banco do Brasil, a exemplo de Jaguar e Stanislaw Ponte Preta — dentre outros, como auxiliar de escrita.

Na década de 60, em plena revolução, inicia o curso de Economia na U.S.P. Desse tempo relembra: "a gente se orgulhava: a gente era comunista! (...) um dia o DOPS chegou lá e levou a gente. Todo mundo preso, orgulhoso ". Apesar da opinião contrária dos familiares e dos amigos, e movido pela vontade cada vez maior de ser escritor, resolveu pedir demissão do Banco do Brasil e abandonar a faculdade de Economia.

A partir de então vem obtendo sucesso com inúmeros livros, novelas, peças, roteiros, etc., tendo sido agraciado com diversos prêmios nacionais e internacionais.

Sua estadia em Portugal, onde morou por 2 anos, deu origem a um de seus grandes sucessos no Brasil, o livro Schifaizfavoire — um tipo de dicionário do português falado pelos portugueses. Lá, nesse período, realizou diversos trabalhos para a RTP (Rádio e Televisão Portuguesa). Atualmente mora em São Paulo e diz que gosta de escrever de manhã e "careta", uma herança adquirida nos tempos em que trabalhou no Banco do Brasil.

Escreveu, semanalmente, na revista "Época" e no jornal "O Estado de São Paulo" por vários anos.

LITERATURA ADULTA

O MORTO QUE MORREU DE RIR - 1969, edição do autor.

PRETO NO BRANCO - 1978, coletânea de contos cariocas, com vários autores.

FÁBRICA DE CHOCOLATES - 1980, Editora Hucitec.

CONTOS PIRANDELLIANOS - 1984, Editora Brasiliense, com vários autores.

RITOS DA INFÂNCIA - 1985, Editora Summus, texto de vários autores, organizado por Fanny Abramovich.

BESAME MUCHO - Editora LP&M, 1987, texto da peça e do roteiro cinematográfico, em parceria com Ramalho Jr.

SCHIFAIZFAVOIRE, DICIONÁRIO DE PORTUGUÊS - 1993, Editora Globo 20 edições

JAMES LINS, O PLAYBOY QUE NÃO DEU CERTO - 1994, Cartaz Editorial.

FILHO É BOM, MAS DURA MUITO, 1995, Maltese Editora.

MAS SERÁ O BENEDITO?, 1996, Editora Globo, 12 edições.

O DIÁRIO DE UM MAGRO, 1997, com ilustrações de Paulo Caruso. Editora Globo, 8 edições.

100 CRÔNICAS, 1997, crônicas, Cartaz Editorial, para ser distribuído para a renovação de assinatura do Estadão.

MINHAS VIDAS PASSADAS (A LIMPO),1998, Editora Globo.

MINHAS MULHERES E MEUS HOMENS, 1999, Editora Objetiva.

OS ANJOS DE BADARÓ, 2000, Editora Objetiva

MINHAS TUDO, 2001, Editora Objetiva

BUSCANDO O SEU MINDINHO, 2002, Editora Objetiva.

PALMEIRAS: UM CASO DE AMOR, 2002, Editora Dba

DIÁRIO DE UM MAGRO 2 - A VOLTA AO SPA, 2003, Editora Objetiva

LITERATURA INFANTO-JUVENIL

CHAPEUZINHO VERMELHO DE RAIVA - 1970, Editora Globo.

O HOMEM QUE SOLTAVA PUM - 1983, Editora Escrita. 3ª edição publicada pela Siciliano em 1998.

SEXTA-FEIRA, DE NOITE - 1984, Quinteto Editorial. 9ª edição

A VIAGEM DE MEMOH - 1987, Quinteto Editorial

AS MENINAS DE VINTE ANOS - 1989, Atual Editora. 8ª edição

E O ZÉ REINALDO, CONTINUA NADANDO? 1989, Atual Editora. 8ª edição

QUADRILHA - 1990, Atual Editora. 7ª edição

LOVE STORY - 1990, Atual Editora. 7ª edição

TA ME OUVINDO, FREI VICENTE? - 1990, Atual Editora. 7ª edição

VESTIBULANDO - 1990, Atual Editora. 7ª edição

Nota: os seis últimos títulos fazem parte dos seis volumes da coleção QUEM CONTA UM CONTO, organizada por Samir Meserani, adotada em várias escolas públicas e privadas no Brasil.

TELEVISÃO

BANG BANG - 1989, projeto de novela, para a Manduri Filmes.

ELA TEM UMA PULGA ATRÁS DA ORELHA - 1974, Caso Verdade. Rede Globo.

ESTÚPIDO CUPIDO - 1976, novela, Rede Globo, dirigida por Régis Cardoso.

SEM LENÇO, SEM DOCUMENTO - 1978, novela, Rede Globo, dirigida por Régis Cardoso e Denis Carvalho.

XICO REY - 1978, minissérie em 13 capítulos para o Canal 1, ARD da Alemanha Ocidental, dirigida por Walter Lima Jr.

DINHEIRO VIVO - 1979, novela, Rede Tupi, dirigida por José de Anchieta e supervisão de Walter Avancini.

O RESTO É SILÊNCIO - 1981, tele-romance, baseado em Érico Veríssimo, TV Cultura.

O VENTO DO MAR ABERTO - 1981, tele-romance baseado em Geraldo Santos, TV Cultura.

MÚSICA AO LONGE - 1982, tele-romance baseado em Érico Veríssimo, TV Cultura.

O HOMEM DO DISCO VOADOR - 1983, Caso Verdade, Rede Globo, supervisão de Antonio Abujamra e Walter Avancini.

DEVOLVAM MEU FILHO - 1983, Caso Verdade, Rede Globo, supervisão de Antonio Abujamra e Walter Avancini.

AVENIDA PAULISTA - 1983, minissérie em 20 capítulos. Equipe de criação, juntamente com Lauro César Muniz, Leilah Assumpção e Daniel Más, com supervisão de Walter Avancini. Rede Globo.

A MÁFIA NO BRASIL - 1984, minissérie em 20 capítulos com vários co-autores, Rede Globo, dirigida por Roberto Farias.

UM SONHO A MAIS - 1986, novela em co-autoria com Lauro César Muniz e Dagomir Marquesi, Rede Globo, dirigida por Roberto Talma.

HELENA - 1987, novela em co-autoria com Dagomir Marquesi e Reinaldo Moraes, Rede Manchete. Exibida em Portugal e Alemanha Ocidental, dirigida por Denise Sarraceni e Luis Fernando Carvalho.

O TESTAMENTO DO SENHOR NAPOMUCENO DA SILVA ARAÚJO - 1991, minissérie em cinco capítulos, baseada no romance do caboverdeano Germano Almeida, para a televisão portuguesa. Opus Filmes.

HOTEL EUROPA - 1991, projeto de seriado para Herman José, produzido pela Videoarte e Costa do Castelo, em Portugal.

VIVA A VIDA - 1991/2, assessoria de teledramaturgia para programa da RTP Internacional, de Portugal, para os Palop.

UM SÉCULO E SETE MULHERES - 1992, inspirada na "Trilogia do Café" de Álvaro Guerra, em 13 capítulos, para a RTP, de Portugal.

O CAMPEÃO, 1996, com Reinaldo Moraes, novela para a Rede Bandeirantes, produzida pela TVPlus, dirigida por Marcos Schetchman.

BANG BANG - 2005, novela para a TV Globo.

TEATRO

O CORDÃO UMBILICAL - 1970, montagem paulista dirigida por José Rubens Siqueira. 1972, montagem carioca, dirigida por Aderbal Junior. Esta peça tem, seguramente, mais de cem montagens amadoras e profissionais em todo o Brasil.

E SE A GENTE GANHAR A GUERRA? - 1971, em São Paulo, dirigida por Celso Nunes.

FÁBRICA DE CHOCOLATES - 1979, em São Paulo, dirigida por Ruy Guerra.

DONA BEJA - 1980, em Belo Horizonte, dirigida por Paulo César Bicalho, no Palácio das Artes.

BESAME MUCHO - 1982, dirigida por Roberto Lage em São Paulo. 1983, dirigida por Aderbal Junior no Rio de Janeiro. Também montada em Brasília, Belo Horizonte e Recife, profissionalmente. A montagem carioca representou o Brasil nos festivais internacionais do Uruguai e Colômbia, em 1983. - Montagem uruguaia, em 1990, dirigida por Adriana Lagomarsino, no Teatro Del Notariado, em Montevidéu.

SALTO ALTO - 1983, direção de Nitis Jacon com o Grupo Proteu de Londrina (PR). Apresentou-se em São Paulo e Rio de Janeiro neste mesmo ano. Montada em 1990, em Recife, profissionalmente.

PURGATÓRIO, UMA COMÉDIA DIVINA - 1984, dirigida por Roberto Lage, em São Paulo.

PAPAI & MAMÃE, CONVERSANDO SOBRE SEXO - Em parceria com Marta Suplicy em 1984, dirigida por Flávio de Souza.

O CAMINHO DA ROÇA - 1990, inédita.

PILATOS: VIDA E OBRA - 1991, adaptação livre do livro homônimo de Carlos Heitor Cony. Inédita.

EU FALO O QUE ELAS QUEREM OUVIR - 2001, dirigida por Roberto Lage, em São Paulo.

CINEMA

O JOGO DA VIDA E DA MORTE - 1971, diálogos, direção de Mario Kuperman.

XICO REY - 1978, argumento, dirigido por Walter Lima Junior.

BESAME MUCHO - 1987, roteiro com Francisco Ramalho Junior, dirigido pelo mesmo. Este filme representou oficialmente o Brasil em vários festivais internacionais.

BANANA SPLIT - 1987, roteiro para direção de Paulinho de Almeida.

O BEIJO 2348/72 - 1987, co-autoria de roteiro e diálogos, dirigido por Walter Rogério.

O TESTAMENTO DO SENHOR NAPUMOCENO DA SILVA ARAÚJO - 1991, baseado no romance do caboverdiano Germano Almeida, para a Opus Filmes de Portugal e direção de Francisco Manso.

JORNALISMO

A Gazeta de Lins (colunista social, aos 14 anos; redator; editor)

Ultima Hora (repórter, redator, editor do UH Revista, com Samuel Wainer)

Folha de S. Paulo (colaborador, cronista, repórter)

O Pasquim (colaborador entre 72 e 73)

Istoé (resenhista de literatura)

Aqui, São Paulo (colaborador)

Jornal da Tarde, cronista, articulista, contista.

O Estado de S. Paul, cronista, articulista e autor da minissérie "James Lins", publicada em capítulos, entre novembro de 93 e fevereiro de 94)

Playboy, Homem, Lui, Status, Saque, AZ, Ícaro, Criativa, Placar, Motorshow, Caros Amigos (artigos e contos).

Época (cronista)

VÍDEO-FICÇÃO

ASSALTO - direção de Adriano Goldman e Hugo Prata. 1987

E O ZÉ REINALDO, CONTINUA NADANDO? - dirigido por Adriano Goldman e Hugo Prata. 1989. Exibido em Cuba, Nova Iorque, Milão, Amsterdã, Paris.

OS DOIS - para direção de Adriano Goldman e Hugo Prata. 1990

SEXTA-FEIRA, DE NOITE - para direção de Hugo Prata. 1994

PRODUÇÃO

REVEILLON - peça de Flávio Márcio, Rio de Janeiro - 1973

BESAME MUCHO - Rio de Janeiro - 1984

PAPAI & MAMÃE CONVERSANDO SOBRE SEXO - São Paulo - 1984

A INFECÇÃO SENTIMENTAL CONTRA-ATACA - Grupo XPTO - 1986

KRONOS - Grupo XPTO - 1987 

Peladas
Armando Nogueira

             Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca silêncios num banco sem encosto.

             E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: "eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe." Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha.
            Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro jogo sem camisa.
            Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.
            Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quiçá no meio-fio, pára de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho.
            Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres: "Copa Rio-Oficial", "FIFA - Especial." Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!) jamais seria barrada em recepção do Itamarati.
           No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.
          Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.
          Nova saída.
          Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.
          O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o coração de uma criança.
Os melhores da crônica brasileira. Rio de Janeiro. José Olympio, 1997.

Biografia de Armando Nogueira

Armando Nogueira nasceu em Xapuri, estado do Acre, no dia 14 de janeiro de 1927. Faleceu no dia 29 de março de 2010, aos 83 anos de idade,  em sua casa no bairro da Lagoa, Rio de Janeiro. Desde 2007, o jornalista lutava contra um câncer no cérebro.
Aos 17 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, para se formar em Direito, mesmo depois de formado, passou a se interessar pelo jornalismo esportivo. Em 1950, começou a trabalhar no “Diário Carioca” e, em 1954, cobriu a Copa do Mundo, na Suíça, a primeira de sua vida profissional, pois esteve presente em treze copas.
Em 1954, testemunhou uma briga entre o técnico da seleção brasileira, Zezé Moreira, e o ministro dos esportes da Hungria. Em 1954, ainda testemunhou o atentado ao jornalista e político, Carlos Lacerda, fato que relatou no jornal no dia seguinte.
Em 1957, passou pela Revista Manchete, e trabalhou como repórter-fotográfico na revista “O Cruzeiro” até 1959, quando se transferiu para o Jornal do Brasil. No JB iniciou como redator e colunista, no período de 1961 a 1973, assinou a coluna “Na Grande Área”.
Além de cobrir Copas do Mundo, também cobriu todos os Jogos Olímpicos de 1980 a 2004. Seu início no telejornalismo ocorreu em 1959, na extinta TV Rio. No período de 1966 a 1990, trabalhou como diretor da Central Globo de Jornalismo da Rede Globo de Televisão, atuando também como diretor de esportes. Trabalhou no Sportv, Rede Bandeirantes e na rádio CBN.
Foi um dos criadores  do Jornal Nacional, depois da reestruturação do jornalismo da TV Globo, em 1990, Armando Nogueira deixou a emissora para dedicar ao jornalismo esportivo. Trabalhou como comentarista do programa “Cartão Verde”, da TV Cultura, entre 1992 a 1993, e na Sportv de 1995 a 2007.
Em 2007, Afastou-se do jornalismo e da televisão devido a problemas de saúde. No dia 30 de março de 2008, a Suderj (Superintendência de Desportos da Cidade do Rio de Janeiro) inaugurou no acesso à tribuna de imprensa do Maracanã, o Espaço Armando Nogueira.
No mesmo ano, recebeu do então ministro das comunicações, Hélio Costa, a medalha de Honra ao Mérito de Comunicação pelos serviços prestados ao jornalismo do Brasil. Como era botafoguense, recebeu do clube em 2009, uma homenagem , na qual batizava a sala de imprensa do Centro de Treinamento de General Severiano com o seu nome.
Sobre Pelé, Armando Nogueira escreveu:
“Se Pelé não tivesse nascido rei, teria nascido bola”.


O amor acaba
Paulo Mendes Campos

           O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.


Um caso de burro

       Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos não são iguais.

       Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente que parecia estar próximo do fim.

       Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que é que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.
       Meia dúzia de curiosos tinham parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para esperta-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez - ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.

       O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mau entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas, mas idéias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.

        E diria o burro consigo:

        “Por mais que vasculhe a consciência , não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com idéia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem moto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade.”
        “Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direito não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regímen, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, em resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei.”

        “A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada - ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia no bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Em fim...”

        Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam, não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?

        Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
        Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace.
Veja a biografia de Machado de Assis


Cobrança 
(Moacyr Scliar)

       Ela abriu a janela e ali estava ele, diante da casa, caminhando de um lado para outro. Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a atenção dos passantes: "Aqui mora uma devedora inadimplente".
          ― Você não pode fazer isso comigo ― protestou ela.
      ― Claro que posso ― replicou ele. ― Você comprou, não pagou. Você é uma devedora inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não pagou.
         ― Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise...
        ― Já sei ― ironizou ele. ― Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema é lhe cobrar. E é o que estou fazendo.
        ― Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta...
        ― Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você, expliquei, avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência foi se esgotando, até que não me restou outro recurso: vou ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua dívida.
        Neste momento começou a chuviscar.
        ― Você vai se molhar ― advertiu ela. ― Vai acabar focando doente.
        Ele riu, amargo:
        ― E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.
        ― Posso lhe dar um guarda-chuva...
        ― Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.
        Ela agora estava irritada:
       ― Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora aqui.
      ― Sou seu marido ― retrucou ele ― e você é minha mulher, mas eu sou cobrador profissional e você é devedora. Eu avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca meu emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.
       Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco importava: continuava andando de um lado para outro, diante da casa, carregando o seu cartaz.
                                      O imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2001.    

Biografia de Moacyr Scliar


Em 1955, passou a cursar a faculdade de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (RS), onde se formou em 1962. Em 1963, inicia sua vida como médico, fazendo residência em clínica médica. Trabalhou junto ao Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (SAMDU), daquela capital.

Publica seu primeiro livro, “Histórias de um Médico em Formação”, em 1962. A partir daí, não parou mais. São mais de 67 livros abrangendo o romance, a crônica, o conto, a literatura infantil, o ensaio, pelos quais recebeu inúmeros prêmios literários. Sua obra é marcada pelo flerte com o imaginário fantástico e pela investigação da tradição judaico-cristã. Algumas delas foram  publicadas na Inglaterra, Rússia, República Tcheca, Eslováquia, Suécia, Noruega, França, Alemanha, Israel, Estados Unidos, Holanda e Espanha e em Portugal, entre outros países.

Em 1965, casa-se com Judith Vivien Oliven.

Em 1968, publica o livro de contos "O Carnaval dos Animais", que o autor considera de fato sua primeira obra.

Especializa-se no campo da saúde pública como médico sanitarista. Inicia os trabalhos nessa área em 1969.

Em 1970, freqüenta curso de pós-graduação em medicina em Israel, sendo aprovado. Posteriormente, torna-se doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública.

Seu filho, Roberto, nasce em 1979.

A convite, torna-se professor visitante na Brown University (Departament of Portuguese and Brazilian Studies), em 1993, e na Universidade do Texas, em Austin.

Colabora com diversos dos principais meios de comunicação da mídia impressa (Folha de São Paulo e Zero Hora). Alguns de seus textos foram adaptados para o cinema, teatro e tevê.

Nos anos de 1993 e 1997, vai aos EUA como professor visitante no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University.

Em 31 de julho de 2003 foi eleito, por 35 dos 36 acadêmicos com direito a voto, para a Academia Brasileira de Letras, na cadeira nº 31, ocupada até março de 2003 por Geraldo França de Lima. Tomou posse em 22 de outubro daquele ano, sendo recebido pelo poeta gaúcho Carlos Nejar.

O escritor faleceu no dia 27/02/2011, em Porto Alegre (RS), vítima de falência múltipla de órgãos.